Olá, tudo bem amigos?
Hoje vamos publicar trechos do livro Volta ao Mundo em 8 Mil Dias, do brasileiro Paulo Rollo. Ele fala da experiência em Portugal, depois de viajar durante 23 anos e percorrer mais de 1,6 milhão de quilômetros de carro e de moto.
“Visitei mais de 70 países e escolhi Portugal para viver”, conta. O livro será lançado nesta terça-feira, dia 19/12, no Chiado Café Literário, em Lisboa, a partir das 18 horas (horário local).
Por Paulo Rollo
(Trecho sobre Portugal do livro Volta ao Mundo em 8 Mil Dias)
A Espanha era bela e cara, naquela altura
Meu objetivo imediato era a terrinha, pá. Ainda não conhecia Portugal. Rodar pelas estradas européias costuma ser muito caro. Pedágios ou selos para pára-brisa podem custar centenas de dólares, especialmente nas auto-estradas para altas velocidades.
Felizmente existem estradas secundárias e mesmo terciárias, mais lentas, estreitas, mas baratas ou de graça. Lentas e estreitas, mas antigas, passando por vilarejos onde os países ainda são o que costumavam ser, antes da globalização geral do planeta.
Foi por estradinhas assim que cheguei ao norte de Portugal através da Galiza, ou Galícia. Por toda a Europa, principalmente na França, trabalhadores portugueses constroem auto-estradas de primeiríssimo mundo. Com exceção de Portugal.
A maioria delas por lá não estava nas melhores condições. Mas, quem liga?
Depois de mais de um ano forçado a falar qualquer coisa, menos português, estar de volta a um lugar onde se falava minha língua, ou quase…, era um prazer indescritível.
Ou descritível por grandes poetas: “Minha pátria é minha língua”, escreveu o português Fernando Pessoa. A minha também.
Volta ao Mundo em 8 Mil Dias
Mais tarde descobri que eu entrara por uma região de Portugal que é das mais tradicionais, culturalmente falando. Mas falando português principalmente.
Falando nisso, o que é o “espanhês?” Em que lugar do mundo se fala o espanhês? Na Galiza, pátria-mãe do “portunhol”, uma mistura de espanhol com português, conhecido como galego.
O detalhe é que o dialeto galego, falado na fronteira norte de Portugal e Espanha, não é uma mistura das duas línguas. É, na verdade, um antigo dialeto do espanhol, do qual se originou a língua portuguesa. Por isso mesmo, usa palavras do que viria a ser o português: – Jo estou buscando mi mulher. – Tengo um voi y duas bacas. – Siento muchas saudades…
Já no Algarve, região no sul de Portugal, preferida por turistas alemães e ingleses, entre outros, a coisa é diferente. Andaram construindo da noite para o dia umas caixas de concreto e vidro, iguais às que se vêem no resto do mundo e as pessoas se vestem e se comportam como em outros centros turísticos.
No norte, principalmente nas pequenas cidades, roupas e gestos ainda são à antiga. Em Chaves, primeira cidade onde parei, entrei numa bodega para pedir um copo d’água. A senhora atrás do balcão perguntou se eu não preferia um copo de leite e me ofereceu um antes que eu pudesse responder. Sim: em 1989 Portugal ainda era um país muito acolhedor, pá.
Durante a viagem eu mandava reportagens para uma revista lisboeta, a Mundo Motorizado. O contato tinha sido feito por telefone, ainda no Brasil. Falei com eles sobre a viagem dizendo que chegaria um ano e pouco depois à Europa e perguntei se gostariam de publicar minhas matérias. Disseram que em princípio sim e no fim publicaram tudo o que mandei. Tinha assim alguma coisa a receber em Lisboa e uma grande vontade de conhecer o pessoal da redação. Afinal, já fazia tempo que estávamos “a dar a volta ao mundo no Uno carrinha”.
A Fiat brasileira exporta muitos carros para a Europa. Aquela era a época dos Unos e Elbas… Mas a Elba, especificamente, ainda não havia sido lançada em Portugal. Quando me paravam na rua, era “o Uno carrinha” que recebia os elogios: – Mas que lindo, pá, este Uno carrinha! Carrinha é o nome português para “perua”. Finalmente cheguei à redação da revista. Rua do Alecrim, 53rc, Lisboa. Eu tinha muita curiosidade para descobrir o que era aquele rc. – Rés do chão, pá. Isto é, térreo.
Fui recebido calorosamente. E com uma passagem grátis para a década de 50. A revista tinha já quarenta anos de vida. E tudo na redação, à exceção das pessoas, parecia datar da fundação. Móveis, quadros, instalações, incluindo um grande e pesado telefone preto de disco. Tudo muito antigo e bem conservado. O prédio da redação era antiqüíssimo, com aquele imponente pé-direito alto e, num corredor, havia alguns azulejos que, segundo me contaram, eram constantemente vistoriados por um fiscal da Prefeitura, porque estavam tombados.
João, filho do fundador, era quem estava cuidando da revista. Ele me ofereceu a casa de Lisboa e a de campo, em Caxias, cidadezinha localizada perto da capital.
Entre uma e outra casa e viagens eventuais a Mafra, Estoril, Coimbra e à belíssima Sintra, passei quase um mês e adorei.
Certo dia estava pois eu sozinho na casa de campo e queria assistir à corrida de Fórmula 1 na televisão. Ao tentar sintonizar o aparelho, terminei quebrando um lindo galo de cerâmica. Fiquei em pânico. E se o galo fosse de estimação? E se fosse uma herança dos tempos de Cabral? E se fosse a única recordação da avó do João? E se… Trocaria todas aquelas dúvidas por um belo galo na minha cabeça. Recolhi cada caquinho e concluí que era impossível recuperá-lo. Liguei então para a mãe do João e comuniquei o falecimento do galináceo. Ela, com a maior tranqüilidade, disse que simplesmente não havia com o que me preocupar, que não valia a pena, que na verdade ela nem sequer gostava daquele galo.
Depois eu vim a saber que o galo, de fato, era uma herança familiar do tempo de sua bisavó e era sua peça de decoração preferida. Soube também que ela guardou todos os cacos numa caixa, enterrou o galo e não conteve duas lágrimas. Mas eu nem sequer desconfiei disso. Pode uma mulher ser mais elegante? Ou mais dotada para a culinária?
Durante aquele mês, em virtude de eu ter comunicado minha predileção pelo bacalhau, pude prová-lo das mais variadas maneiras, mas invariavelmente deliciosos. Bacalhau com batatas, legumes, frutos do mar. Bacalhau à Gomes de Sá, à moda do Porto, salada de bacalhau, bacalhau com natas, ou seja, gratinado no forno com suflê de batata e creme de leite… Tudo com azeite de oliva extravirgem e um bom vinho, preferivelmente um da região do Alentejo. Ora pois, pá.
Resumão sobre o autor! Em 23 anos Paulo Rollo percorreu 1,6 milhão de quilômetros através de 71 países, guiado por sua maior paixão: viajar, conhecer novos lugares, fazer de todo o planeta sua casa e família. Viveu amores, sentiu saudades. Deparou-se com a mais irritante indiferença, com a intolerância, mas também com apoios surpreendentes e gestos de solidariedade. Conheceu a fome, o medo, o risco de morte. Fez amigos, safou-se de guerrilheiros e de leões. Viu a miséria e as mais belas criações da natureza e do talento humano.